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quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Capítulo 4~



Todo mundo junta dolorosos espinhos
Cuidadosamente no fundo de seu coração
Ao fazer mal a si mesmo
” - Because (Olivia Lufkin)



ALLANA

- Allana? - Escutei a voz da minha mãe, abrindo a porta sorrateiramente enquanto eu tentava abrir os botões do vestido sujo, que ficavam nas costas - Você é louca menina?

Ela se virou e abaixou uma pequena cortininha que fecha a abertura de vidro da porta.

- Nem havia me lembrado disso...

- Venha aqui. - Ela veio em minha direção, desabotoando rapidamente os botões do vestido e retirando-o, deixando-me apenas com a roupa íntima. - Você às vezes parece um garoto. Mas seu irmão ainda insiste em comprar roupas rosas para você. Foi ele que pediu que eu trouxesse tudo nessa cor! - E apontou para a sacola que eu já havia olhado.

Dentro desta havia uma regata rosa bebê em cetim, uma saia branca com pequeninas flores vintage na cor rosa também, combinando perfeitamente com a blusa. Além de um sutiã pink de costas nadador (igual à blusa) e uma calcinha na mesma cor, com babados! E uma sandália de salto baixo, graças a Deus na cor bege, bem discreta.

- Você viu uma presilha de flor que eu trouxe? Fiz amizade com a vendedora e ela me deu essa presilha pra combinar com a roupa. - Ela já ajustava meu sutiã na altura certa, deixando-o bem apertado e seguro. A calcinha de babado era muito infantil, mas confortável.

- Essa saia é muito linda. - Disse enquanto ela a colocava em mim, tomando cuidado com a minha perna.

- Também gostei dela assim que a vi no manequim da loja. - Enquanto ela já colocava a blusa e ajeitava a presilha de flor rosa no meu cabelo, eu continuei admirando os detalhes da bela saia que minha mãe comprara. A primeira roupa que ela comprara sozinha para mim.

Ela tinha mesmo um bom gosto.

- Vou chamar seu irmão, ele está aflito querendo voltar logo para casa. Acho que você também deve estar, não é? - Ela nem esperou minha resposta e se virou saindo do quarto.

Ela me tratou de uma forma muito diferente. Algo que ela sempre evitou fazer, mas eu gostei de receber sua atenção por alguns poucos minutos.

- Allana? - Era a enfermeira James. Logo atrás, estava o médico de um nome que não me lembro. - Eu chamei o médico pra você jurar pra mim e pra ele que cuidará desse ferimento até que ele cicatrize!

- Claro que vou cuidar Senhorita James. Não é muito legal não poder andar.

- Ótimo, então eu vou te liberar.

- Agora?

- Sim, menina! Seu irmão insistiu tanto que deveria te dar alta que decidi aceitar seu pedido. - Assim que ela terminou de dizer, Dan apareceu atrás dela.

- Me agradeça Allana! Eu sou ou não sou um cara legal? - Ele sorriu, com as mãos no bolso da calça. Corei.

- Obrigada Dan...

- Então, arrume suas coisas mocinha, você deve estar bem cansada de ficar aqui, não é? - O doutor finalmente falou e pousou sua mão na minha cabeça. - Volte daqui a uma semana, tudo bem? Quero ver como está sua saúde e fazer mais alguns exames adicionais. Certos problemas só aparecem depois de certo tempo... - Ele sorriu e bagunçou um pouco meu cabelo, fazendo a presilha se afrouxar.

O doutor saiu do quarto, seguido pela enfermeira James. Arrumei minha presilha e olhei para o meu irmão.

- Vamos? Não vejo a hora de voltar pra casa, pro meu quarto!

- Bem Allana... Eu estava pensando de você ficar no meu quarto até melhorar.

- Mas por quê, Dan? - Eu não gostaria de trocar meu quarto pelo dele.

- É só uma semana! Você vai precisar de atenção. A enfermeira disse que se você se mexer muito enquanto dorme, pode abrir seu ferimento.

- Puxa, mas é só um machucado. Não preciso dessa atenção excessiva! - fechei a cara. Ele apenas pegou minha mochila com minha roupa suja "socada" dentro dela e saiu do quarto.

Pra quê tanto exagero? Isso é só um machucado! Me aproximei bem da minha perna, para olhar esse ferimento com mais clareza. Puxa, ele está inchado e cheio de remédio. A enfermeira disse que não podia tampá-lo com nenhum curativo hoje, para agilizar a cicatrização, deixando esse machucado feio pra caramba, respirar.

- Segure-se em mim. - Nem notei quando Dan chegou. Ele me pegou no colo com destreza e apoiei-me no seu pescoço, enquanto ele arrumava a minha saia de forma que não ficasse à mostra minha calcinha de criança.

Daniel estava usando um perfume muito bom, acho que é o perfume do papai. Me aproximei mais do seu pescoço para sentir o cheiro.

- Sim, é do nosso pai. Esse bom perfume me faz lembrar dele.

- Me faz lembrar também.

Ele me levou até o carro, colocando-me no banco de carona, com mamãe no banco do motorista. Então, Dan entrou pela porta do passageiro e mamãe logo ligou o carro, saindo do estacionamento do hospital. Seriam vinte minutos até chegar em casa.

Mamãe estava com um estranho sorriso no rosto enquanto cantava uma música da banda preferida do papai: The Beatles. Pelo retrovisor lateral direito, olhava às vezes para Dan, que deixara a janela da porta onde estava sentado aberta e sentia o vento invadir seu rosto, bagunçando ainda mais seus cabelos. Quem visse de fora, parecia que éramos uma família feliz e convencional. Mas eu sabia, lá no fundo, que todos estavam pensando no papai. Mamãe sempre odiou Beatles. Meu irmão odiava a ventania do outono que bagunçava seus cabelos, mas papai dizia que os ventos do outono sempre nos trazem notícias boas e que ele deveria apreciar isso mais vezes. E eu nunca fiquei quieta por mais de cinco minutos.
Papai realmente nos mudara, à distância.

Não sei o que vai acontecer conosco daqui pra frente. Mas papai fará muita falta, ele era especial de uma forma diferente para cada um de nós. Mamãe gostava de receber flores toda semana no trabalho dela, dadas pelo papai. Se não me engano, suas preferidas eram as peônias brancas. Mesmo tendo certo ciúme de mim, ambos estavam diferentes hoje. Mamãe não reclamou da forma como estou sentada de saia e pernas abertas, como um garoto. Ela sempre reclamou da minha cor preferida, do modo como sento, como falo, como respiro... Hoje ela estava tão “mãe”. Mesmo com os pedidos de Dan sobre as roupas e tudo mais, ela agiu como se eu fosse sua filha preferida. Pelo menos uma vez na vida. E Dan... Surpreendi-me com a forma como cuidou de mim.

Ao olhar novamente pelo retrovisor, vejo o garoto loiro, com aqueles olhos azuis quase transparentes me fez pensar que...

- Allana! - Mamãe cutucava meu ombro e notei que Dan percebera que eu o encarava pelo retrovisor e rapidamente virei meu rosto para ela. - Já chegamos. Vem Dan, pegue-a no colo e a leve pro seu quarto.

- Sim, mãe. - Ele abriu a porta do carona e ajeitou minha saia para que não mostrasse nada. Me senti um pouco encabulada, mas rapidamente me pegou no colo e entramos em casa.

Dan, carregando-me ainda no colo, subiu as escadas e me levou até seu quarto, deixando-me em sua cama.

- Vou trazer a sua cama para cá. Não movimente essa perna por nada!

- Sim, sim. Aliás, Dan?

Ele já estava próximo à porta.

- Pode me trazer aquele MP3 com minhas músicas preferidas? Está no criado-mudo.

- Trago já.

Ele saiu e decidi admirar o quarto dele. Haviam vários pôsteres de bandas de rock e heavy metal na parede. Homens de preto, com cabelos grandes e volumosos, que se misturavam às barbas também grandes tomavam conta do lugar. Desenhos de caveiras e rosas vermelhas também tomavam conta das paredes, mesmo não sendo chegada nesse tipo de música, achei o quarto dele magnífico, único. Num canto do quarto, tinha uma prateleira gigante em altura, com portas de vidro, que tinham diversos cds e vinis de bandas de rock. Nas duas divisórias de baixo, continha muitos livros, uns setenta. Só não tinha mais do que eu, mas era uma boa coleção.

Tudo no lugar tinha um toque dele. Um desenho, um pôster, uma parede de fotos de amigos, dos nossos pais... E notei, diferente de todas as outras fotos, uma em particular. Simplesmente porque tinha muita cor nela. Era uma foto minha com papai no parque florestal que ficava há dez minutos daqui. Nessa foto, estávamos embaixo de uma árvore, eu com um vestido florido rosa e papai com seu suéter rosa claro, para combinar. Eu sorria enquanto meus cabelos voavam ao vento e papai mantinha suas mãos nos meus ombros, impedindo que alguns fiozinhos de cabelo voassem. Estávamos felizes.

- Nosso pai entrou no meu quarto um dia antes de morrer e ficou pasmo de não ter nenhuma foto de família aqui. Então ele me entregou essa para que eu me lembrasse de vocês, mas no dia eu não me importei. - Dan arrastava de qualquer jeito a minha cama, fazendo um estrondoso barulho! A sorte era que a cama passava pela porta. - Ele me disse para cuidar bem de você quando ele for velho e não souber mais cuidar nem de si mesmo.

Apenas sorri, já com os olhos embaçados ao lembrar-me do nosso dia no parque.

- Um dia depois, logo após saber do acidente, decidi colocar essa foto e cumprir a promessa que papai me pediu.

- Dan, você não precisa cuidar de mim por dever esse favor ao papai.

- No começo foi por isso Allana, mas eu estou percebendo o porquê do nosso pai ter te amado tanto.

Disfarcei meu rosto corado e não disse nada.




DANIEL

Ela virou o rosto, corada. Parece até que nunca recebera um elogio na vida. Isso é impossível, pois Allana é uma menina muito linda. E no auge dos seus dezenove anos, quem não olharia para ela?

Continuei empurrando a cama, de qualquer jeito, até ajuntar com a minha, se tornando uma só.

- Vai deixar as duas juntas?

- Meu quarto não é tão grande assim. Eu tenho que dar um jeito de continuar tendo algum espaço aqui.

- Ah, sim. Mas posso dormir na sua cama? Eu prefiro dormir virada para a parede.

- Claro que pode. - Terminei de encostar uma cama na outra - Vou lá embaixo procurar alguma coisa pra comer. Liga a televisão para se distrair!

Desci as escadas e minha mãe estava vendo televisão na sala. Notei seus olhos embaraçados, já sabendo o motivo. Fingi que não tinha visto e fui em direção à cozinha.

Abri a geladeira, procurando algo bom para comer. Nada. Fui em direção ao armário, onde tinha três pacotes de pipocas de micro-ondas, sendo uma delas de sabor caramelo. Peguei esta e a de sabor natural, colocando uma de cada vez no micro-ondas e deixando no tempo programado. Então voltei para a geladeira e peguei uma garrafa de refrigerante ainda fechada e esperei pelas pipocas.

Depois de prontas, coloquei-as em uma vasilha e enchi a minha pipoca de sal. Saí da cozinha e estava quase colocando os pés no primeiro degrau quando ouço minha mãe:

- Ele costumava chegar em casa nessa hora, exatamente no intervalo da minha novela. E sua primeira pergunta sempre era: Allana esteve bem hoje? - Ela soluçou - Só depois ele se lembrava de sua esposa que o amava mais do que tudo no mundo.

- Allana é a filha menor. Foi fruto do amor de vocês, mãe. - Me virei para subir as escadas, mas novamente tive que parar no meio do caminho.

- O que ela tem que o fez amá-la tanto? E o que ela tem que está fazendo você defendê-la de tudo? O que ela tem de tão especial que está fazendo você querer ficar sempre do lado dela?

- Já chega mãe. Não viaja tá? Ela é sua filha também. - Me virei para subir as escadas - Ela mal se recuperou e você quer arrumar briga de novo? Deixa ela em paz, que saco.

- Mas filho...

- Mãe, - parei na escada, com as duas vasilhas de pipoca em uma mão, dois copos na outra e o refrigerante gelado no braço - será que a morte do meu pai não pode fazer você mudar um pouquinho? Sei lá, pensar mais em sermos uma família ao invés de se corroer pelo passado.

- Eu também preciso de você, querido. Sabe... Eu quero que sejamos uma família.

- Então o que te aflige? Me diz? Ao invés de ficar se corroendo nesse sofá, por que não vem assistir um filme com a gente? - A essa altura da conversa eu estava tentando entender a cabeça da minha mãe. Será que ela ficou louca pela morte do meu pai? Por isso ela quer a minha atenção?

Ela não respondeu e começou a prestar atenção na novela. Bufei alto e continuei subindo as escadas.

- Sinto falta dele... - Ela sussurrou, mas consegui escutar.

- Eu também... - Sussurrei de volta, antes de seguir pelo corredor até meu quarto.

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