“Todo mundo junta dolorosos espinhos
Cuidadosamente no fundo de seu coração
Ao fazer mal a si mesmo” - Because (Olivia Lufkin)
Cuidadosamente no fundo de seu coração
Ao fazer mal a si mesmo” - Because (Olivia Lufkin)
ALLANA
-
Allana? - Escutei a voz da minha mãe, abrindo a porta sorrateiramente enquanto
eu tentava abrir os botões do vestido sujo, que ficavam nas costas - Você é
louca menina?
Ela
se virou e abaixou uma pequena cortininha que fecha a abertura de vidro da
porta.
-
Nem havia me lembrado disso...
-
Venha aqui. - Ela veio em minha direção, desabotoando rapidamente os botões do
vestido e retirando-o, deixando-me apenas com a roupa íntima. - Você às vezes
parece um garoto. Mas seu irmão ainda insiste em comprar roupas rosas para
você. Foi ele que pediu que eu trouxesse tudo nessa cor! - E apontou para a
sacola que eu já havia olhado.
Dentro
desta havia uma regata rosa bebê em cetim, uma saia branca com pequeninas
flores vintage na cor rosa também, combinando perfeitamente com a blusa. Além
de um sutiã pink de costas nadador (igual à blusa) e uma calcinha na mesma cor,
com babados! E uma sandália de salto baixo, graças a Deus na cor bege, bem
discreta.
-
Você viu uma presilha de flor que eu trouxe? Fiz amizade com a vendedora e ela
me deu essa presilha pra combinar com a roupa. - Ela já ajustava meu sutiã na
altura certa, deixando-o bem apertado e seguro. A calcinha de babado era muito
infantil, mas confortável.
-
Essa saia é muito linda. - Disse enquanto ela a colocava em mim, tomando
cuidado com a minha perna.
-
Também gostei dela assim que a vi no manequim da loja. - Enquanto ela já
colocava a blusa e ajeitava a presilha de flor rosa no meu cabelo, eu continuei
admirando os detalhes da bela saia que minha mãe comprara. A primeira roupa que
ela comprara sozinha para mim.
Ela
tinha mesmo um bom gosto.
-
Vou chamar seu irmão, ele está aflito querendo voltar logo para casa. Acho que
você também deve estar, não é? - Ela nem esperou minha resposta e se virou
saindo do quarto.
Ela
me tratou de uma forma muito diferente. Algo que ela sempre evitou fazer, mas
eu gostei de receber sua atenção por alguns poucos minutos.
-
Allana? - Era a enfermeira James. Logo atrás, estava o médico de um nome que
não me lembro. - Eu chamei o médico pra você jurar pra mim e pra ele que
cuidará desse ferimento até que ele cicatrize!
-
Claro que vou cuidar Senhorita James. Não é muito legal não poder andar.
-
Ótimo, então eu vou te liberar.
-
Agora?
-
Sim, menina! Seu irmão insistiu tanto que deveria te dar alta que decidi
aceitar seu pedido. - Assim que ela terminou de dizer, Dan apareceu atrás dela.
- Me
agradeça Allana! Eu sou ou não sou um cara legal? - Ele sorriu, com as mãos no
bolso da calça. Corei.
-
Obrigada Dan...
-
Então, arrume suas coisas mocinha, você deve estar bem cansada de ficar aqui,
não é? - O doutor finalmente falou e pousou sua mão na minha cabeça. - Volte
daqui a uma semana, tudo bem? Quero ver como está sua saúde e fazer mais alguns
exames adicionais. Certos problemas só aparecem depois de certo tempo... - Ele
sorriu e bagunçou um pouco meu cabelo, fazendo a presilha se afrouxar.
O
doutor saiu do quarto, seguido pela enfermeira James. Arrumei minha presilha e
olhei para o meu irmão.
-
Vamos? Não vejo a hora de voltar pra casa, pro meu quarto!
-
Bem Allana... Eu estava pensando de você ficar no meu quarto até melhorar.
-
Mas por quê, Dan? - Eu não gostaria de trocar meu quarto pelo dele.
- É
só uma semana! Você vai precisar de atenção. A enfermeira disse que se você se
mexer muito enquanto dorme, pode abrir seu ferimento.
-
Puxa, mas é só um machucado. Não preciso dessa atenção excessiva! - fechei a
cara. Ele apenas pegou minha mochila com minha roupa suja "socada"
dentro dela e saiu do quarto.
Pra
quê tanto exagero? Isso é só um machucado! Me aproximei bem da minha perna,
para olhar esse ferimento com mais clareza. Puxa, ele está inchado e cheio de
remédio. A enfermeira disse que não podia tampá-lo com nenhum curativo hoje,
para agilizar a cicatrização, deixando esse machucado feio pra caramba,
respirar.
-
Segure-se em mim. - Nem notei quando Dan chegou. Ele me pegou no colo com
destreza e apoiei-me no seu pescoço, enquanto ele arrumava a minha saia de
forma que não ficasse à mostra minha calcinha de criança.
Daniel
estava usando um perfume muito bom, acho que é o perfume do papai. Me aproximei
mais do seu pescoço para sentir o cheiro.
-
Sim, é do nosso pai. Esse bom perfume me faz lembrar dele.
- Me
faz lembrar também.
Ele
me levou até o carro, colocando-me no banco de carona, com mamãe no banco do
motorista. Então, Dan entrou pela porta do passageiro e mamãe logo ligou o
carro, saindo do estacionamento do hospital. Seriam vinte minutos até chegar em
casa.
Mamãe
estava com um estranho sorriso no rosto enquanto cantava uma música da banda
preferida do papai: The Beatles. Pelo retrovisor lateral direito, olhava às
vezes para Dan, que deixara a janela da porta onde estava sentado aberta e
sentia o vento invadir seu rosto, bagunçando ainda mais seus cabelos. Quem
visse de fora, parecia que éramos uma família feliz e convencional. Mas eu
sabia, lá no fundo, que todos estavam pensando no papai. Mamãe sempre odiou
Beatles. Meu irmão odiava a ventania do outono que bagunçava seus cabelos, mas
papai dizia que os ventos do outono sempre nos trazem notícias boas e que ele
deveria apreciar isso mais vezes. E eu nunca fiquei quieta por mais de cinco
minutos.
Papai realmente nos mudara, à distância.
Papai realmente nos mudara, à distância.
Não
sei o que vai acontecer conosco daqui pra frente. Mas papai fará muita falta,
ele era especial de uma forma diferente para cada um de nós. Mamãe gostava de
receber flores toda semana no trabalho dela, dadas pelo papai. Se não me
engano, suas preferidas eram as peônias brancas. Mesmo tendo certo ciúme de
mim, ambos estavam diferentes hoje. Mamãe não reclamou da forma como estou
sentada de saia e pernas abertas, como um garoto. Ela sempre reclamou da minha
cor preferida, do modo como sento, como falo, como respiro... Hoje ela estava
tão “mãe”. Mesmo com os pedidos de Dan sobre as roupas e tudo mais, ela agiu
como se eu fosse sua filha preferida. Pelo menos uma vez na vida. E Dan...
Surpreendi-me com a forma como cuidou de mim.
Ao
olhar novamente pelo retrovisor, vejo o garoto loiro, com aqueles olhos azuis
quase transparentes me fez pensar que...
-
Allana! - Mamãe cutucava meu ombro e notei que Dan percebera que eu o encarava
pelo retrovisor e rapidamente virei meu rosto para ela. - Já chegamos. Vem Dan,
pegue-a no colo e a leve pro seu quarto.
-
Sim, mãe. - Ele abriu a porta do carona e ajeitou minha saia para que não
mostrasse nada. Me senti um pouco encabulada, mas rapidamente me pegou no colo
e entramos em casa.
Dan,
carregando-me ainda no colo, subiu as escadas e me levou até seu quarto, deixando-me
em sua cama.
-
Vou trazer a sua cama para cá. Não movimente essa perna por nada!
-
Sim, sim. Aliás, Dan?
Ele
já estava próximo à porta.
-
Pode me trazer aquele MP3 com minhas músicas preferidas? Está no criado-mudo.
-
Trago já.
Ele
saiu e decidi admirar o quarto dele. Haviam vários pôsteres de bandas de rock e
heavy metal na parede. Homens de preto, com cabelos grandes e volumosos, que se
misturavam às barbas também grandes tomavam conta do lugar. Desenhos de
caveiras e rosas vermelhas também tomavam conta das paredes, mesmo não sendo
chegada nesse tipo de música, achei o quarto dele magnífico, único. Num canto
do quarto, tinha uma prateleira gigante em altura, com portas de vidro, que
tinham diversos cds e vinis de bandas de rock. Nas duas divisórias de baixo,
continha muitos livros, uns setenta. Só não tinha mais do que eu, mas era uma
boa coleção.
Tudo
no lugar tinha um toque dele. Um desenho, um pôster, uma parede de fotos de
amigos, dos nossos pais... E notei, diferente de todas as outras fotos, uma em
particular. Simplesmente porque tinha muita cor nela. Era uma foto minha com
papai no parque florestal que ficava há dez minutos daqui. Nessa foto,
estávamos embaixo de uma árvore, eu com um vestido florido rosa e papai com seu
suéter rosa claro, para combinar. Eu sorria enquanto meus cabelos voavam ao
vento e papai mantinha suas mãos nos meus ombros, impedindo que alguns
fiozinhos de cabelo voassem. Estávamos felizes.
-
Nosso pai entrou no meu quarto um dia antes de morrer e ficou pasmo de não ter nenhuma
foto de família aqui. Então ele me entregou essa para que eu me lembrasse de
vocês, mas no dia eu não me importei. - Dan arrastava de qualquer jeito a minha
cama, fazendo um estrondoso barulho! A sorte era que a cama passava pela porta.
- Ele me disse para cuidar bem de você quando ele for velho e não souber mais
cuidar nem de si mesmo.
Apenas
sorri, já com os olhos embaçados ao lembrar-me do nosso dia no parque.
- Um
dia depois, logo após saber do acidente, decidi colocar essa foto e cumprir a
promessa que papai me pediu.
-
Dan, você não precisa cuidar de mim por dever esse favor ao papai.
- No
começo foi por isso Allana, mas eu estou percebendo o porquê do nosso pai ter
te amado tanto.
Disfarcei
meu rosto corado e não disse nada.
DANIEL
Ela
virou o rosto, corada. Parece até que nunca recebera um elogio na vida. Isso é
impossível, pois Allana é uma menina muito linda. E no auge dos seus dezenove
anos, quem não olharia para ela?
Continuei
empurrando a cama, de qualquer jeito, até ajuntar com a minha, se tornando uma
só.
-
Vai deixar as duas juntas?
-
Meu quarto não é tão grande assim. Eu tenho que dar um jeito de continuar tendo
algum espaço aqui.
-
Ah, sim. Mas posso dormir na sua cama? Eu prefiro dormir virada para a parede.
-
Claro que pode. - Terminei de encostar uma cama na outra - Vou lá embaixo
procurar alguma coisa pra comer. Liga a televisão para se distrair!
Desci
as escadas e minha mãe estava vendo televisão na sala. Notei seus olhos embaraçados,
já sabendo o motivo. Fingi que não tinha visto e fui em direção à cozinha.
Abri
a geladeira, procurando algo bom para comer. Nada. Fui em direção ao armário,
onde tinha três pacotes de pipocas de micro-ondas, sendo uma delas de sabor
caramelo. Peguei esta e a de sabor natural, colocando uma de cada vez no
micro-ondas e deixando no tempo programado. Então voltei para a geladeira e
peguei uma garrafa de refrigerante ainda fechada e esperei pelas pipocas.
Depois
de prontas, coloquei-as em uma vasilha e enchi a minha pipoca de sal. Saí da
cozinha e estava quase colocando os pés no primeiro degrau quando ouço minha
mãe:
-
Ele costumava chegar em casa nessa hora, exatamente no intervalo da minha
novela. E sua primeira pergunta sempre era: Allana esteve bem hoje? - Ela
soluçou - Só depois ele se lembrava de sua esposa que o amava mais do que tudo
no mundo.
-
Allana é a filha menor. Foi fruto do amor de vocês, mãe. - Me virei para subir
as escadas, mas novamente tive que parar no meio do caminho.
- O
que ela tem que o fez amá-la tanto? E o que ela tem que está fazendo você
defendê-la de tudo? O que ela tem de tão especial que está fazendo você querer
ficar sempre do lado dela?
- Já
chega mãe. Não viaja tá? Ela é sua filha também. - Me virei para subir as
escadas - Ela mal se recuperou e você quer arrumar briga de novo? Deixa ela em
paz, que saco.
-
Mas filho...
-
Mãe, - parei na escada, com as duas vasilhas de pipoca em uma mão, dois copos
na outra e o refrigerante gelado no braço - será que a morte do meu pai não
pode fazer você mudar um pouquinho? Sei lá, pensar mais em sermos uma família
ao invés de se corroer pelo passado.
- Eu
também preciso de você, querido. Sabe... Eu quero que sejamos uma família.
-
Então o que te aflige? Me diz? Ao invés de ficar se corroendo nesse sofá, por
que não vem assistir um filme com a gente? - A essa altura da conversa eu
estava tentando entender a cabeça da minha mãe. Será que ela ficou louca pela
morte do meu pai? Por isso ela quer a minha atenção?
Ela
não respondeu e começou a prestar atenção na novela. Bufei alto e continuei subindo
as escadas.
-
Sinto falta dele... - Ela sussurrou, mas consegui escutar.
- Eu
também... - Sussurrei de volta, antes de seguir pelo corredor até meu quarto.
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